quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Sírio Possenti



Pequenos e diferentes textos sobre a questão "presidente / presidenta", especialmente alguns "raciocínios" completamente inesperados, me levam a redigir as pequenas notas que seguem, começando pelas questões mais óbvias. Algumas palavras têm formas masculinas e femininas. Outras, não. Nos casos em que existem as duas, pode-se falar de flexão. Por exemplo, menina é a forma feminina de menino.

Há certa correspondência entre as palavras e as coisas (há, no mundo, meninos e meninas etc.). Mesmo assim, é bom separar a questão da realidade da questão gramatical. É que há casos em que a correspondência no mundo com palavras masculinas e femininas não é representada na gramática. Casos como homem / mulher, boi / vaca etc. representam esse subconjunto. Isto é, as palavras femininas dessas duplas referem-se a seres femininos, mas não são flexões gramaticais das formas masculinas; são completamente diferentes delas.

Mas isso não significa que todas as palavras masculinas e femininas tenham correlatos machos e fêmeas. Essa hipótese ingênua é logo desmentida por palavras como muro, tijolo (masculinas) e porta, chave (femininas), entre milhares de outras, sem contar as abstratas, como pensamento e intuição.

A existência ou não de correspondentes femininos gramaticais de formas masculinas é um efeito, mas não uniforme, da existência de alguma correspondência no mundo. Por exemplo, certamente não haveria a forma parenta se só houvesse parentes masculinos. Por outro lado, o fato de haver algum tipo de distinção no mundo não cria necessariamente formas gramaticais específicas que lhes correspondam. Usamos parenta, mas não usamos tenenta. E pouco se usa sargenta. É possível que essas flexões passem a ser cada vez mais usadas, em decorrência de haver cada vez mais mulheres executando essas funções. O caso presidenta está neste bolo: pode ser que muitos estranhem a forma feminina simplesmente porque nunca foi usada, ou porque sempre foi muito pouco usada, por não haver mulheres exercendo a função.

Há femininos resultantes de flexão cuja natureza esquecemos: por exemplo, horta é (seria) o feminino de horto (Mattoso acha que sim, mas Houaiss não registra): horta é um tipo de horto. Observe-se que não há, nesse caso, nenhuma relação entre gênero e sexo (casos mais claros são barco / barca e jarro / jarra). O que faz lembrar outro fenômeno: muitos femininos em -a são marcados apenas pela flexão da forma dita masculina. A única mudança (perceptível) está no final da palavra (o / a). Mas há um grupo de femininos (de fato, também de plurais) que é marcado também pela mudança da vogal do radical: horto / horta, porco / porca, sogro / sogra (para os distraídos, uma ajuda: dizemos sôgro e sógra etc.).

Diversos raciocínios estranhos circulam na mídia. Há quem pense que, se dizemos presidenta, deveríamos flexionar segundo os mesmos critérios todas as palavras que terminam em -nte. Ou seja, deveríamos dizer também contenta, exigenta etc. Que as formas são gramaticalmente possíveis - e seriam regulares - fica provado pelo fato de que são sempre as mesmas e resultam de flexões regulares. Mas o léxico das línguas é bastante irregular: muitas formas - e flexões - possíveis nunca ocorrem. Os casos mais claros são certas derivações: por que dizemos jogo e não *jogamento nem *jogação? Por que dizemos julgamento e não *julgação? por que dizemos ameaça e não *ameaçamento ou *ameaçação? Por que dizemos filiação e não *filiamento? Em vez de esposa, poderíamos dizer marida, se as gramáticas funcionassem no vácuo. Acontece que funcionam em sociedades vivas, que interferem nelas.

Talvez valha a pena inserir umas poucas observações de Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, p. 135). Diz ele, entre outras coisas, que, no caso de palavras terminadas em -e, algumas ficam invariáveis, e a outras se acrescenta o morfema -a (provocando a queda da vogal temática). Seu exemplo para formas variáveis é alfaiate - alfaiat(e) + a - alfaiata. Entre as invariáveis, cita amante, cliente, constituinte, habitante. Na lista das que são usadas com, mas também sem flexão, cita infante - infanta, presidente - presidenta, parente - parenta, governante - governanta.

Em relação ao apelo a gramáticas e dicionários, as atitudes dos "expertos" são bastante engraçadas. O comportamento típico é o seguinte: quando não gostam das formas que os dicionários e gramáticas abonam, dizem que gramáticas e dicionários não são as únicas autoridades. Mas, quando as gramáticas e dicionários concordam com seu gosto, esses documentos são santificados.

Uma variante desse comportamento foi o de Alberto Dines (Observatório da Imprensa) em relação a Sarney. Em resumo: Dilma Rousseff usou a forma presidenta em seu discurso de posse. Falando no final da cerimônia, Sarney usou várias vezes a forma presidente (Dines brincou: Sarney está na oposição pela primeira vez). Claramente, Dines não gosta de presidenta. Mas também não gosta de Sarney. Exceto quando seus gostos coincidem, é claro. Ora: é razoável considerar Sarney um político mais prejudicial do que útil. Mas ele não é melhor como escritor, nem como autoridade em relação a padrões gramaticais.

E há dois raciocínios ainda mais estranhos. Aliás, dificilmente poderiam merecer esta qualificação. O mesmo Dines, sofisticado jornalista, escreveu, com a maior cara de pau: "Agora, esquecidas as lutas das sufragistas e feministas, finalmente alcançada a igualdade dos gêneros, a presidenta da República deixa de ter um sucessor - Michel Temer jamais poderá ser designado como vice-presidenta". Como se o sucessor de um cargo designado passageiramente por uma forma feminina devesse ser também designado no feminino. Esquece o elementar: que a forma feminina corresponde, no caso, ao sexo da ocupante!

Mas houve coisa pior do que esta, se isso é possível: comentando o texto de Dines, um leitor alegou que a forma presidenta só faria sentido se fosse o feminino de presidento (pasmem!!). Ora, a tese só faria sentido se todas as masculinas que têm flexão feminina terminassem em -o. Mas existem, e estão muito firmes, palavras como ele, aquele, este, autor etc. Segundo o dito "raciocínio", as palavras femininas ela, aquela, esta e autora, para ficar nestes exemplos, só poderiam ser usadas se os masculinos correspondentes fossem elo, aquelo, esto, autoro. Que ridículo!

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