domingo, 6 de fevereiro de 2011

Deste modo ou daquele modo


Conforme calha ou não calha.


Podendo às vezes dizer o que penso,

E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,

Vou escrevendo os meus versos sem querer,

Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,

Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse

Como dar-me o sol de fora.


Procuro dizer o que sinto

Sem pensar em que o sinto.

Procuro encostar as palavras à idéia

E não precisar dum corredor

Do pensamento para as palavras



Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.

O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado

Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.



Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a Natureza produziu.



E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,

Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.

E assim escrevo, ora bem ora mal,

Ora acertando com o que quero dizer ora errando,

Caindo aqui, levantando-me acolá,

Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.



Ainda assim, sou alguém.

Sou o Descobridor da Natureza.

Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.

Trago ao Universo um novo Universo

Porque trago ao Universo ele-próprio.



Isto sinto e isto escrevo

Perfeitamente sabedor e sem que não veja

Que são cinco horas do amanhecer

E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça

Por cima do muro do horizonte,

Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos

Agarrando o cimo do muro

Do horizonte cheio de montes baixos.


Fernando Pessoa

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